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domingo, 12 de abril de 2015

Morre, aos 90 anos, o jurista Paulo Brossard

"Daqui, diremos ao Brasil: a nossa vitória está longe ainda de ser alcançada. Mas, dia a mais, dia a menos, ela virá, pela voz dos homens que, no fundo das trevas, não perdem a esperança", (Paulo Brossard, em 1979).
O Brasil perdeu neste domingo um de seus maiores juristas. Morreu, aos 90 anos, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Paulo Brossard de Souza Pinto. Ele estava doente desde outubro do ano passado, situação que se agravou em fevereiro. O velório, inicialmente marcado para 15h, começará às 16h no Salão Negrinho do Pastoreio, no Palácio Piratini. A cremação será às 21h no Crematório Metropolitano.
— Ele faleceu pacificamente em sua residência, em Porto Alegre — resigna-se a filha Rita Brossard, sem informar detalhes sobre a morte.
Confira sete momentos da trajetória de Brossard
Brossard fez história à frente de importantes cargos do Executivo. Foi professor, um conferencista, um agropecuarista, um articulista prolífico. Com a morte de Paulo Brossard, é como se vários personagens de destaque no cenário nacional houvessem desaparecido de uma só vez, reunidos na mesma pessoa. Em quase sete décadas de vida pública, o gaúcho de Bagé foi quase tudo e destacou-se em quase tudo, deixando uma marca indelével na evolução da sociedade brasileira.
No Legislativo, foi a voz mais altissonante da luta contra a ditadura. No Executivo, comandou o Ministério da Justiça no delicado período de transição democrática. No Judiciário, ajudou a moldar um novo Brasil como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do STF.
Passou os anos finais em um casarão no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, cercado por 30 mil livros e por relíquias de uma vida, como a caneta Parker comprada em 1941, quando chegou à Capital gaúcha na condição de estudante, e com a qual assinou importantes documentos e decisões. Debilitado, movia-se com dificuldade nos últimos tempos, mas ainda produzia artigos frequentes para Zero Hora, envolvia-se no debate das questões mais candentes e mantinha-se alinhado como sempre — são raras as fotos em que aparece sem terno, elegância que arrematava com os chapéus que eram uma espécie de marca registrada.
De todas as suas encarnações, talvez a mais impactante, aquela que conferiu a Brossard uma certa aura de reserva moral da nação, tenha a sido a de baluarte da oposição durante o regime militar. Curiosamente, ele próprio revelou, em entrevista a Zero Hora, que inicialmente nutriu simpatias pelo golpe de 1964.
— Para mim, aquele havia sido um gesto de legítima defesa de uma sociedade ameaçada por um governo que tinha perdido a noção de governar em uma série de desatinos — disse.
Brossard desiludiu-se com os militares que derrubaram João Goulart apenas em outubro de 1965, com o Ato Institucional número 2, que estabeleceu eleição indireta para a presidência, extinguiu o pluripartidarismo e facilitou a cassação de opositores. Um de seus grandes momentos veio em 1974, como candidato do MDB a uma vaga de senador pelo Rio Grande do Sul. Brossard enfrentou Nestor Jost, nome da ditadura. O confronto dos dois em um debate promovido pela TV Gaúcha (hoje RBS TV) marcou época. Atribuiu-se ao desempenho de Brossard no embate, Código Penal em punho, a vitória esmagadora que ele obteve nas urnas, uma humilhação para o regime — que, dois anos depois, para não mais correr o mesmo risco, restringiu a campanha eleitoral na TV à apresentação da legenda, do currículo, do número de registro e da foto 3x4 do candidato.
Vencido o pleito, correu o Brasil a foto de Brossard de bombachas, altivo, cavalgando pelas coxilhas de Bagé a comemorar. A imagem virou um símbolo de resistência e esperança.
Em Brasília, o senador novato começou já na posse a construir a legenda de tribuno indomável, em um discurso no qual desafiava o regime. Ele descreveu o episódio em entrevista concedida uma década atrás a ZH:
— Quando tomei posse, fiz um longo discurso analisando tudo o que tinha acontecido desde 1964 e terminei dizendo: "Fui eleito por oito anos, no entanto, meu mandato pode durar oito meses". Parei, olhei para um lado, olhei para outro, para cima, para baixo e continuei: "Ou oito semanas". E repeti o mesmo gesto, como quem diz: alguém objeta, alguém quer um aparte? E continuei: "Ou oito dias, ou oito horas. Mas enquanto estiver aqui, não pedirei licença a ninguém para dizer aquilo que entendo que deva dizer. Entenderam?"
Brossard cumpriu a promessa. Da tribuna, castigava os desmandos do regime, lançando petardos que ganhavam as páginas do jornais. Em 1977, quando o governo fechou o Congresso e criou os senadores biônicos, nomeados pelo Planalto, o gaúcho preparou um discurso feroz tão extenso que precisou ser desmembrado em quatro partes — proferidas uma a cada semana.
— Quando fiz o quarto discurso, o deputado Magalhães Pinto (governista de Minas Gerais), que estava na sessão do Senado, me olhou e disse: "Está contente, não está?". Eu respondi: "Estou". Porque depois poderia vir a cassação, que não faria mal algum. Se tivesse havido alguma coisa até o terceiro discurso, eu sairia aborrecido, inconformado por não ter dito tudo. Depois do último discuro, pensei: agora já disse tudo, podem me cassar.
Mas o regime não ousou pôr as garras em Brossard. Ele havia se tornado um símbolo poderoso demais. Não brilhava só nas tribunas, mas também nos palanques. Percorria o país para defender a redemocratização. O jornalista Geneton Moraes Neto lembrou, em texto para ZH, o efeito de uma incursão por Pernambuco, em 1976, quando o senador gaúcho atacou em praça pública o arbítrio, as eleições indiretas, as cassassões e o Ato Institucional número 5, que endurecera ainda mais o regime: "A gente sabia que, logo depois de desembarcar, o senador tiraria o chapéu, se acomodaria numa poltrona e pronunciaria um punhado de frases ferinas — com aquelas pausas brossardianamente dramáticas e aqueles gestos brossardianamente teatrais." Três anos atrás, quando Geneton pediu que resumisse sua vida em uma palavra, Brossard recusou-se. Sabia que, tendo vivido tudo o que viveu, era impossível.
— Em uma não dá. Em duas ou três: não tenho queixas. Acho que recebi demais — afirmou.
Brossard teve papel na consolidação da democracia
Em março de 1988, o presidente José Sarney chamou seu ministro da Justiça, Paulo Brossard, e anunciou que iria renunciar. Brossard era única pessoa a quem confiara a decisão. O gaúcho assustou-se. Tinha vivo na memória o caos que se seguira à renuncia de Jânio Quadros, em 1961, culminando com a ditadura, três anos depois.
— Isso é uma inclinação, uma hipótese ou uma resolução? — questionou.
— É uma resolução — respondeu Sarney.
O presidente pretendia deixar o cargo por causa das articulações na Assembleia Constituinte para que seu mandato, originalmente de seis anos, mas já reduzido a cinco, ficasse em apenas quatro. Concluíra não ter mais condições de governar se isso se concretizasse. Com o país recém dando os primeiros passos no rumo da democracia, Brossard temeu que a renúncia colocasse tudo a perder. Resolveu agir.
Convocou para a manhã seguinte uma reunião secreta no Ministério da Justiça. Chamou os líderes dos quatros principais partidos — Ulysses Guimarães (PMDB), Jarbas Passarinho (PDS), Marco Maciel (PFL) e Paiva Muniz (PTB) — e revelou as intenções de Sarney. Depois da reunião, a campanha pelos quatro anos de mandato desapareceu — e Sarney permaneceu no posto. Ao jornalista Geneton Moraes Neto, Brossard contou que a possibilidade de renúncia causou tal alarma que os líderes dos partidos trataram de conter seus correligionários mais exaltados.
Anos depois, o ex-ministro da Justiça relatou a ocasião em que ajudou a mudar o rumo da história em um documento e pediu que Sarney e os dois líderes ainda vivos — Maciel e Passarinho — o assinassem, certificando a veracidade dos fatos. Com isso, pretendia corrigir a versão segundo a qual a aprovação dos cinco anos de mandato pelo Congresso fôra obtida mediante concessões de rádio e TV a parlamentares.
— Era preciso fazer isso e acho que prestei um serviço — contou ao jornalista Luiz Valls, em conversas que deram origem ao livro Brossard, 80 anos na História Política do Brasil.
O episódio ilustra como, depois de ajudar a derrotar a ditadura, o jurista gaúcho teve também um papel central na consolidação da democracia, muitas vezes operando nos bastidores. Também deixa evidente sua preocupação com a memória e com a produção de documentos que permanecem como legado para as gerações futuras — algo em que se esmerou a partir de 1989, como ministro do Supremo Tribunal Federal.
— Para a formação da jurisprudência da corte, ele deixou significativa e valiosa contribuição em votos que integram seus repositórios e servirão sempre de fonte importante no exame dos temas versados com cuidado científico — registrou o colega de STF José Néri da Silveira.

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