"Daqui, diremos ao Brasil: a nossa vitória está longe ainda de ser
alcançada. Mas, dia a mais, dia a menos, ela virá, pela voz dos homens
que, no fundo das trevas, não perdem a esperança", (Paulo Brossard, em 1979).
O Brasil perdeu neste domingo um de seus maiores juristas. Morreu,
aos 90 anos, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF)
Paulo Brossard de Souza Pinto. Ele estava doente desde outubro do ano
passado, situação que se agravou em fevereiro. O velório, inicialmente
marcado para 15h, começará às 16h no Salão Negrinho do Pastoreio,
no Palácio Piratini. A cremação será às 21h no Crematório Metropolitano.
— Ele faleceu pacificamente em sua residência, em Porto Alegre —
resigna-se a filha Rita Brossard, sem informar detalhes sobre a morte.
Confira sete momentos da trajetória de Brossard
Brossard fez história à frente de importantes cargos do Executivo.
Foi professor, um conferencista, um agropecuarista, um articulista
prolífico. Com a morte de Paulo Brossard, é como se vários personagens
de destaque no cenário nacional houvessem desaparecido de uma só vez,
reunidos na mesma pessoa. Em quase sete décadas de vida pública, o
gaúcho de Bagé foi quase tudo e destacou-se em quase tudo, deixando uma
marca indelével na evolução da sociedade brasileira.
No Legislativo, foi a voz mais altissonante da luta contra a
ditadura. No Executivo, comandou o Ministério da Justiça no delicado
período de transição democrática. No Judiciário, ajudou a moldar um novo
Brasil como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro
do STF.
Passou os anos finais em um casarão no bairro Petrópolis, em Porto
Alegre, cercado por 30 mil livros e por relíquias de uma vida, como a
caneta Parker comprada em 1941, quando chegou à Capital gaúcha na
condição de estudante, e com a qual assinou importantes documentos e
decisões. Debilitado, movia-se com dificuldade nos últimos tempos, mas
ainda produzia artigos frequentes para Zero Hora, envolvia-se no debate
das questões mais candentes e mantinha-se alinhado como sempre — são
raras as fotos em que aparece sem terno, elegância que arrematava com os
chapéus que eram uma espécie de marca registrada.
De todas as suas encarnações, talvez a mais impactante, aquela que
conferiu a Brossard uma certa aura de reserva moral da nação, tenha a
sido a de baluarte da oposição durante o regime militar. Curiosamente,
ele próprio revelou, em entrevista a Zero Hora, que inicialmente nutriu
simpatias pelo golpe de 1964.
— Para mim, aquele havia sido um gesto de legítima defesa de uma
sociedade ameaçada por um governo que tinha perdido a noção de governar
em uma série de desatinos — disse.
Brossard desiludiu-se com os militares que derrubaram João Goulart
apenas em outubro de 1965, com o Ato Institucional número 2, que
estabeleceu eleição indireta para a presidência, extinguiu o
pluripartidarismo e facilitou a cassação de opositores. Um de seus
grandes momentos veio em 1974, como candidato do MDB a uma vaga de
senador pelo Rio Grande do Sul. Brossard enfrentou Nestor Jost, nome da
ditadura. O confronto dos dois em um debate promovido pela TV Gaúcha
(hoje RBS TV) marcou época. Atribuiu-se ao desempenho de Brossard no
embate, Código Penal em punho, a vitória esmagadora que ele obteve nas
urnas, uma humilhação para o regime — que, dois anos depois, para não
mais correr o mesmo risco, restringiu a campanha eleitoral na TV à
apresentação da legenda, do currículo, do número de registro e da foto
3x4 do candidato.
Vencido o pleito, correu o Brasil a foto de Brossard de bombachas,
altivo, cavalgando pelas coxilhas de Bagé a comemorar. A imagem virou um
símbolo de resistência e esperança.
Em Brasília, o senador novato começou já na posse a construir a
legenda de tribuno indomável, em um discurso no qual desafiava o regime.
Ele descreveu o episódio em entrevista concedida uma década atrás a ZH:
— Quando tomei posse, fiz um longo discurso analisando tudo o que
tinha acontecido desde 1964 e terminei dizendo: "Fui eleito por oito
anos, no entanto, meu mandato pode durar oito meses". Parei, olhei para
um lado, olhei para outro, para cima, para baixo e continuei: "Ou oito
semanas". E repeti o mesmo gesto, como quem diz: alguém objeta, alguém
quer um aparte? E continuei: "Ou oito dias, ou oito horas. Mas enquanto
estiver aqui, não pedirei licença a ninguém para dizer aquilo que
entendo que deva dizer. Entenderam?"
Brossard cumpriu a promessa. Da tribuna, castigava os desmandos do
regime, lançando petardos que ganhavam as páginas do jornais. Em 1977,
quando o governo fechou o Congresso e criou os senadores biônicos,
nomeados pelo Planalto, o gaúcho preparou um discurso feroz tão extenso
que precisou ser desmembrado em quatro partes — proferidas uma a cada
semana.
— Quando fiz o quarto discurso, o deputado Magalhães Pinto
(governista de Minas Gerais), que estava na sessão do Senado, me olhou e
disse: "Está contente, não está?". Eu respondi: "Estou". Porque depois
poderia vir a cassação, que não faria mal algum. Se tivesse havido
alguma coisa até o terceiro discurso, eu sairia aborrecido, inconformado
por não ter dito tudo. Depois do último discuro, pensei: agora já disse
tudo, podem me cassar.
Mas o regime não ousou pôr as garras em Brossard. Ele havia se
tornado um símbolo poderoso demais. Não brilhava só nas tribunas, mas
também nos palanques. Percorria o país para defender a redemocratização.
O jornalista Geneton Moraes Neto lembrou, em texto para ZH, o efeito de
uma incursão por Pernambuco, em 1976, quando o senador gaúcho atacou em
praça pública o arbítrio, as eleições indiretas, as cassassões e o Ato
Institucional número 5, que endurecera ainda mais o regime: "A gente
sabia que, logo depois de desembarcar, o senador tiraria o chapéu, se
acomodaria numa poltrona e pronunciaria um punhado de frases ferinas —
com aquelas pausas brossardianamente dramáticas e aqueles gestos
brossardianamente teatrais." Três anos atrás, quando Geneton pediu que
resumisse sua vida em uma palavra, Brossard recusou-se. Sabia que, tendo
vivido tudo o que viveu, era impossível.
— Em uma não dá. Em duas ou três: não tenho queixas. Acho que recebi demais — afirmou.
Brossard teve papel na consolidação da democracia
Em março de 1988, o presidente José Sarney chamou seu ministro da
Justiça, Paulo Brossard, e anunciou que iria renunciar. Brossard era
única pessoa a quem confiara a decisão. O gaúcho assustou-se. Tinha vivo
na memória o caos que se seguira à renuncia de Jânio Quadros, em 1961,
culminando com a ditadura, três anos depois.
— Isso é uma inclinação, uma hipótese ou uma resolução? — questionou.
— É uma resolução — respondeu Sarney.
O presidente pretendia deixar o cargo por causa das articulações na
Assembleia Constituinte para que seu mandato, originalmente de seis
anos, mas já reduzido a cinco, ficasse em apenas quatro. Concluíra não
ter mais condições de governar se isso se concretizasse. Com o país
recém dando os primeiros passos no rumo da democracia, Brossard temeu
que a renúncia colocasse tudo a perder. Resolveu agir.
Convocou para a manhã seguinte uma reunião secreta no Ministério da
Justiça. Chamou os líderes dos quatros principais partidos — Ulysses
Guimarães (PMDB), Jarbas Passarinho (PDS), Marco Maciel (PFL) e Paiva
Muniz (PTB) — e revelou as intenções de Sarney. Depois da reunião, a
campanha pelos quatro anos de mandato desapareceu — e Sarney permaneceu
no posto. Ao jornalista Geneton Moraes Neto, Brossard contou que a
possibilidade de renúncia causou tal alarma que os líderes dos partidos
trataram de conter seus correligionários mais exaltados.
Anos depois, o ex-ministro da Justiça relatou a ocasião em que ajudou
a mudar o rumo da história em um documento e pediu que Sarney e os dois
líderes ainda vivos — Maciel e Passarinho — o assinassem, certificando a
veracidade dos fatos. Com isso, pretendia corrigir a versão segundo a
qual a aprovação dos cinco anos de mandato pelo Congresso fôra obtida
mediante concessões de rádio e TV a parlamentares.
— Era preciso fazer isso e acho que prestei um serviço — contou ao
jornalista Luiz Valls, em conversas que deram origem ao livro Brossard,
80 anos na História Política do Brasil.
O episódio ilustra como, depois de ajudar a derrotar a ditadura, o
jurista gaúcho teve também um papel central na consolidação da
democracia, muitas vezes operando nos bastidores. Também deixa evidente
sua preocupação com a memória e com a produção de documentos que
permanecem como legado para as gerações futuras — algo em que se esmerou
a partir de 1989, como ministro do Supremo Tribunal Federal.
— Para a formação da jurisprudência da corte, ele deixou
significativa e valiosa contribuição em votos que integram seus
repositórios e servirão sempre de fonte importante no exame dos temas
versados com cuidado científico — registrou o colega de STF José Néri da
Silveira.
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