O panorama hoje é especialmente perverso: queda da produção; inflação renitente, déficit público, déficit externo, juros siderais e desemprego como drama anunciado
Completam-se, por estes dias, 30 anos de regime democrático no Brasil.
Não há dúvida de que o país avançou bastante no período. Temos muito
mais liberdade e justiça. O progresso social foi acentuado, como
demonstram os indicadores de educação, saúde e rendimentos dos mais
pobres. A superinflação, deflagrada pelo choque externo do começo dos
anos 1980, com seus três ou quatro dígitos anuais, foi vencida a
partir dos governos Itamar e FHC. Isso se deu com ampliação das
conquistas democráticas, ao contrário do que se viu em1964/68. E que se
destaque o papel fundamental da agricultura brasileira, que se tornou
poderosa e altamente competitiva, em escala mundial. Temos, pois, razões
para estar satisfeitos pelo caminho até aqui seguido. E nosso papel é
cercar as margens de erro rumo ao futuro e evitar armadilhas.
Senador José Serra |
Há, desde logo, um pesado déficit que coincide com a era democrática: o
crescimento medíocre do conjunto da economia. Entre 1930/80, crescemos a
mais de 7% ao ano; de meados da década de 80 até 2014, essa taxa
recuou, na média, a 3%. Mesmo deflacionando os números pelo crescimento
da população, declinante no cotejo desses dois períodos, a degradação da
performance econômica brasileira é evidente.
Tal degradação deveu-se à desindustrialização prematura que atingiu o
país, a ponto de a participação da indústria manufatureira no PIB voltar
ao nível do imediato pós-guerra: em torno de 12%. Digo "prematura"
porque não se trata de um fenômeno parecido com o que se viu nos países
desenvolvidos, com renda por habitante equivalente a 4/5 vezes a nossa. A
dinâmica das economias emergentes bem sucedidas, note-se, é outra: as
que mais têm crescido nas últimas décadas devem seu desempenho
precisamente ao dinamismo do setor industrial.
Sem reindustrializar o Brasil, não vamos obter vaga no segundo turno do
campeonato das nações. Vivemos num país continental, com 200 milhões de
habitantes e renda per capita ainda na casa de US$ 12 mil/ano (paridade
do poder de compra). Por melhor que seja a nossa condição de
exportadores de produtos agrominerais, esse vetor nunca será capaz de
puxar a produtividade do conjunto da economia, gerar os milhões de
empregos de que necessitamos e turbinar as receitas tributárias para
cobrir carências sociais e regionais. Não é uma questão de gosto, mas de
fato. Aliás, a propósito da utopia da economia primário-exportadora
como o principal fator do desenvolvimento brasileiro, vale ler o
interessante artigo de Ilan Goldfajn publicado nesta página na última
terça: a tendência de longo prazo dos preços internacionais de alimentos
é de lento e persistente declínio em termos reais.
Custo Brasil |
Em parte, a desindustrialização prematura se deveu a uma combinação de
quatro fatores, com pesos diferentes ao longo do tempo: 1) o mau
entendimento das mudanças no mundo na direção de maior abertura
comercial e ampla e irresistível liberdade para movimentos de capitais;
2) a superinflação e suas consequências; 3) as ideologias, à esquerda e à
direita, que menosprezam políticas coerentes de desenvolvimento; 4) o
despreparo e a pura inépcia do governo.
Um dos problemas mais graves que decorrem de políticas públicas
deficientes se revela no custo-Brasil, que expõe nossa baixa
competitividade em relação à média dos parceiros comerciais. Os produtos
manufaturados brasileiros são 25% mais caros do que poderiam ser não em
razão da ineficiência empresarial — nas condições dadas, há eficiência —
mas por causa das carências de infraestrutura, das despesas financeiras
e de uma tributação aloprada. Para arremate dos males, subsistiu
durante boa parte dessas três décadas a sobrevalorização cambial.
Há um custo que tem sido subestimado pelos analistas que é a conversão
reacionária do PT. O que quer dizer? Explico: associado ao declínio
econômico e aos fatores que o provocaram, assistimos, com a ascensão do
partido ao poder, ao fortalecimento e ao infeliz “aggiornamento” do
patrimonialismo, que tanto infelicitou a história brasileira. Ele se
expressa de dois modos principais: 1) com a formação de uma espécie de
burguesia do capital estatal; 2) com a submissão da máquina do Estado a
instrumentos que servem à manipulação eleitoral e aos desvios de
recursos públicos para partidos e indivíduos. Vejam o calvário da
Petrobras.
A crise de representatividade da democracia brasileira, cujo primeiro
sinal foram as manifestações populares de meados de 2013, chegou ao seu
ponto máximo neste semestre. Tudo de ruim veio junto, começando pela
percepção generalizada do estelionato eleitoral.
Reeleita, Dilma não conta com um fator que costuma beneficiar um novo
governante: o crédito de confiança. Como dispor dele, depois de quatro
anos de tropeços que só agravaram a herança recebida do governo
Lula-Dilma? Herança que, diga-se, já não era leve no início de 2011:
real supervalorizado, déficit externo crescente, rigidez fiscal,
investimentos industriais em declínio e subinvestimento na
infraestrutura. E isso tudo se dava apesar da notável bonança externa,
derivada do boom de preços de nossas commodities. Paradoxalmente, esses
preços elevados serviram para desequilibrar ainda mais a economia
brasileira.
O panorama hoje é especialmente perverso: queda da produção; inflação
renitente, com viés para cima; déficit público em ascensão, caminhando
para 8% do PIB; déficit externo idem, rumo aos 4,5% do PIB; juros
siderais e desemprego como drama anunciado. A cereja amarga desse bolo
maligno fica por conta do monitoramento feito pelas agências
internacionais de risco. Os petistas já devem andar com saudades do
FMI...
A má notícia é que atravessaremos, sim, dias difíceis. A boa notícia é
que os críticos relevantes dessa governança capenga entendem que não há
saída fora das regras da democracia, esta respeitável senhora de 30
anos. Eventuais tentações autoritárias se revelam, isto sim, é no
discurso dos poderosos de turno. Mas, como diria o poeta Mário Quintana,
também eles “passarão”, e o regime democrático “passarinho”. E ele
canta bons amanhãs.
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